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Lâmina Azulada e a Dança dos Mitos


Há dois anos, mais ou menos por este mês de março, eu lançava minha primeira “novela gráfica” autoral: Lâmina Azulada. Já tinha publicado vários trabalhos em coletâneas da Editora Draco (São Paulo) e Demócrito Rocha (Fortaleza), bem como fiz parte da coletânea Capitão Rapadura 40 Anos, na qual também fui organizador, mas ainda não tinha feito meu “voo solo” - que nunca é completamente sozinho, pois eu tinha como co-piloto o grande artista Rafael Dantas e o navegador Deyvison Manes no letreiramento - em um livro em quadrinhos com roteiro inteiramente meu (e parte do trabalho de edição também).

Com a edição no meio do mundo, completamente fora do meu controle já, parei pra pensar um pouco sobre o processo - mental, emocional - que me levou a este trabalho. Lâmina Azulada é um épico (ou procura ser) sobre Euclides, um cangaceiro já no fim da vida, que recebe da entidade Severino (o barqueiro dos mortos) a proposta de ser seu combatente contra seu “senhor”. Mas, cansado de lutas, Euclides nega, despertando a ira de Severino e fazendo com o ser se negue a levá-lo ao outro lado do rio dos mortos. Euclides, então, procura a “lâmina azulada” do título, um item que o permitiria reclamar pelo seu “direito de morte”.

O quadrinho mistura meu fascínio pelas novelas de cavalaria (a “Lâmina” é uma versão da mágica Excalibur) e pelos contos gregos (ora se não é o Estirge que Euclides deseja atravessar no barco de Severino?), mas num cenário e personagens que me são bem próprios: a brasilidade nordestina das lendas, dos diálogos e das gentes que aqui vivem, com suas rebeldes esperanças e predatórias hierarquias sociais - outros mundos habitando meu mundo, porque, no fim, somos mais iguais do que as diferenças que vociferamos.

Por mais que sejam de outras culturas, esses mitos são deveras nossos - como bem escreveu o antropólogo Joseph Campbell: “mitos são metáforas do humano” - e máscaras de anseios que, acredito, todos vivemos. O medo da morte se translinea em sua aceitação, e a História do mundo parece sugerir um e oferecer o outro como irmãos siameses disputando seus lugares no ventre materno, não entendendo que são dois, mas também um - como somos todos, afinal, enquanto humanos.

Em minha “nordestina tragédia grega”, eu tive a intenção de apresentar este conceito: a aceitação da morte está em reconhecer seu temor. Ela não é solução para os problemas, pois afinal desta vida não levamos nada, nem as dívidas, e, se ainda as temos, então talvez não seja momento de partirmos. Euclides, o personagem principal de Lâmina Azulada, aprende a lição da pior forma: ele tenta, em seu acordo com Severino (a Morte), cobrar o direito de todo ser vivente, mas a culpa e seus erros o prendem à vida como labirínticos grilhões, e não se pode fugir deles - é preciso conhecê-los, saber seus segredos, e reconhecer que eles foram postos pelo próprio preso.

Acredito que, nesses tempos em que a morte (ainda) ronda cada esquina, escondida no manto das notícias falsas, é sempre importante lembrarmos das lições dos mitos e das histórias - a dança que existe desde antes dos gregos - a de que somos nossos algozes, mas também nossos próprios heróis.

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