Acredito ser correto dizer que nunca se produziu tantas histórias em quadrinhos e com tanta diversidade de títulos e ideias quanto hoje no Brasil - refiro-me a “quadrinhos para brasileiros”, ou seja, visando a leitura por pessoas nativas e não apontando para mercados externos ou determinados tipos de mídias de publicação (apesar destas possibilidades não terem sumido).
A velocidade e amplitude da internet e o crescimento e alcance das mídias sociais levaram (ou retornaram?) os quadrinhos a seu lugar inevitável: como mídia popular e de massa e que pertencem a qualquer um com uma ideia, algum trato com imagens, e muita paixão pelo ofício.
É na “paixão”, por sinal, que o “joio e o trigo” são separados: na imensidão de produções que multiplicam-se em redes sociais imagéticas ou plataformas próprias à mídia, nascendo e morrendo numa velocidade imensa - por serem ocorrências momentâneas de seus produtores ou resultados da ansiosa frustração que a internet incuba - algumas encontram suas graças no público, cujo carinho alimenta a constância e dedicação de seus criadores, com isso, podendo levar as obras para além de seus ambientes originais e alcançando as (ainda muito hierarquizadas e romantizadas) editoras - que, dentre as muitas vantagens, dão a chance de “estourar a bolha” dos regulares apreciadores de HQs, levando esses novos quadrinhos às mãos de outros leitores.
“Rei de Lata”, trabalho de Jefferson Ferreira e que começou a ser publicado em 2018 na plataforma online Tapas, foi uma dessas obras que alcançou tal patamar, encontrando uma casa na editora New Pop, conhecida principalmente por publicar traduções de mangás - os quadrinhos japoneses - e que tem procurado investir em obras e autores nacionais. O primeiro volume (com 9 dos 31 capítulos gratuitos online) foi lançado em 2021, totalmente colorido com acabamento de qualidade e formato 21x14cm - com pré-venda pelo gigantesco site Amazon, ficando algumas vezes dentre os primeiros mais vendidos.
Por sua vez, não fosse a informação de que “Rei de Lata” é feito no Brasil por um autor brasileiro, facilmente seria confundido com os outros títulos japoneses da New Pop - isso porque Jefferson, paulista da Zona Leste e filho de 1990 (década que os animes eram constantes na TV e cuja adolescência possivelmente viu a ascensão das HQs japonesas no mercado brasileiro), coloca vários dos elementos que caracterizam os mangás: “Rei de Lata” conta a história de um mundo pós-apocalíptico em que as crianças, dotadas de poderes sobrehumanos, resultados dos eventos “do fim do mundo”, tem de lutar pela própria sobrevivência: um pano de fundo ideal para explorar tópicos como amizade, esforço e vitória - pilares temáticos da popular Weekly Shonem Jump, revista japonesa que exportou grandes sucessos, como YuYu Hakusho, Dragon Ball, One Piece, Cavaleiros do Zodíaco.
Apesar da evidente “fórmula”, Jefferson utiliza todo o conteúdo de sua realidade nas histórias - os personagens parecem saídos, em suas formas e maneirismos, dos trabalhos nipônicos, mas suas essências - das motivações às maneiras de ver, lidar e reconhecer o mundo - possuem um forte caráter brasileiro, em que os protagonistas têm histórias de vida, falares e relações que dialogam contundentemente com os arroubos dos adolescentes e crianças brasileiras das décadas de 1990 e anos 2000 - sendo a HQ quase um recorte das fantasias de toda uma geração cujos heróis não eram mais Thundercats, mas Goku e companhia. Essa mistura de temperos e referências, além de uma história que extrapola seus clichês, faz de “Rei de Lata” uma HQ consoante com seu tempo, mas que ainda precisará vencer mais desafios antes de ser reconhecida como um marco desta geração. Assim como os heróis em que a inspiram... e assim como todo brasileiro.
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