O Impossível
Era 2000. Eu costumava ir ao cinema de forma despretensiosa, ver o que estava passando e, se algum cartaz e título me parecesse interessante, eu entraria no cinema e me deixaria ser surpreendido (ou decepcionado). Relembrando dessa forma, parecia uma época “romântica” demais: sem internet em alta velocidade com trailers ou fotos de bastidores ou resenhas feitas 5 minutos depois de estreias, deixar-se levar por quase nada era uma pequena e infantil aventura.
Enfim, estava eu vislumbrando os cartazes quando me deparei com um grupo de pessoas quase em silhuetas – uma sombra preta tapando seus rostos e uma luz dando um contorno a suas formas – e um título em fonte quadrada com efeito metálico: X-Men.
Eu não acreditei. Mesmo aquilo lembrando Wolverine, Professor X, Tempestade… parecia impossível pra mim estar vendo uma produção Hollywoodiana de X-Men – os X-Men de Lee e Kirby, que conheci na fase Claremont-Byrne, que tinha um desenho colorido na TV (e aquele cartaz não era nada colorido, convenhamos) – eu via e simplesmente não acreditava. “Se for X-Men vai ser algo bem Generation X”, pensava o Tomé dentro de mim. No fim, decidi “pagar pra ver”.
Havia poucas pessoas na sala. Lembro de ter visto alguém com uma camisa do Wolverine e pensei “outro iludido”. O filme começou. Campo de extermínio de Auschwitz, uma cena forte, numa referência a A Lista de Schindler (1993). Um menino judeu sendo separado dos pais. Intenso. Dramático. Não parecia X-Men. O menino, como esperado, se esforça, grita e esperneia, lutando como uma criança para estar junto aos pais. Nada de X-Men. O menino se estica enquanto é contido por um, dois, três, quatro soldados. O portão que separa ele dos pais se contorce e dobra, como se quisesse encontrar a ponta dos dedos do garoto. “Espera… esse… é o…? Não”, meu Tomé pessoal se contorcia idem. Enfim, a criança no filme é desmaiada por uma coronhada. O portão de metal retorcido a ponto de estar quase aberto por completo. “Oh meu Deus… é X-men”.
O impossível apareceu na minha frente e me surpreendeu durante cerca de 2h. Eu tinha assistido X-Men.
Eu já era fã de quadrinhos e cinema. Mais do primeiro do que do segundo. Colecionava HQs Marvel desde 1993, mas sobrevivia de sebos, lendo bastante coisa da década de 1980. Tinha uma boa coleção de Homem-Aranha e Teia do Aranha, mas também muito de Conan, Wolverine, uma ou outra de Homem de Ferro e Capitão América, um Quarteto Fantástico na rebaba, sempre como complemento de algum outro título – a DC nunca realmente me atraiu, apesar de eu ser um grande fã dos filmes, principalmente o Superman de 1978, que minha mãe adorava, e o Batman de 1989, que era, talvez, meu preferido da época – fora as leituras espaçadas em bibliotecas com sessões de gibis ou na casa de colegas mais velhos, que tinham materiais difíceis de achar e que eu gostava.
Apesar da minha incredulidade, encontrar esses personagens em desenhos para a TV não era incomum, Batman: A Série Animada vivia sua era de ouro e o desenho dos X-Men fazia as crianças saírem correndo do colégio pra assistir antes da hora do almoço. Mas filmes? Não. Depois do fracasso da franquia Batman, o gênero parecia ter morrido, e para os heróis Marvel, então, nunca chegou a realmente nascer.
Claro, tudo mudou com Blade – mas o obscurantismo do personagem e a carreira em evidência de Wesley Snipes afastavam o fato de que ele tinham vindo de uma HQ – porém, nele foram testadas as primeiras possibilidades que surgiram em X-Men, então vale dá-lhe o devido crédito pela façanha.
X-Men, pra mim, foi um marco. Foi o primeiro impossível que eu tive de engolir. Principalmente porque eu não tinha noção de que algo estava iniciando ali. Que toda uma era surgia na minha frente com um garoto com poder de controlar os metais sendo arrastado por oficiais nazistas de seus pais em Auschwitz. Eu pensei que ia ser só aquilo e pronto. Sequer me passou em mente que esse primeiro teria uma sequência, imagina pensar que poderiam explorar mais heróis da Marvel.
Daí, em 2002, Homem-Aranha do Sam Raimi estreou. Cinemas abriam sessões especiais matutinas pra receber a enorme quantidade de gente que procurava ver o filme. Filas davam voltas em quarteirões. Pessoas esperando até três horas para comprar o ingresso. No Brasil, foram 22 semanas em cartaz. Eu vi o filme umas 6 vezes no cinema e acredito que as duas últimas foram para confirmar que as quatro vezes anteriores não tinham sido um sonho. Porque ainda soava impossível pra mim.
Depois disso, vários se seguiram. Era o começo de uma nova era pra Marvel: Motoqueiro Fantasma, Hulk, Quarteto Fantástico, Demolidor, X-Men avançou em mais filmes, Homem-Aranha ganhou outras duas sequências.
(A DC também reinvestiu em seu morcego: Batman voltava aos cinemas em 2005 numa aventura competente e empolgante. No ano seguinte, Superman retornava em um filme que não conseguiu fugir do fantasma de Christopher Reeve e acabou não tendo o tempo necessário pra mostrar que poderia ser um bom filme.)
Todos esses heróis, no entanto, viviam em mundos separados, em universos que não se encontravam – alguns tinham produtoras diferentes, equipes diferentes, tons diferentes. A realidade dos quadrinhos em que esses vários personagens coexistem não parecia se sustentar dentro do cinema. Eu, sempre curioso, entendia pouco sobre esses acordos de venda de direitos para outras mídias, mas comecei a achar impossível a união de todos essas franquias.
Somente 8 anos separam Homem de Ferro do primeiro X-Men. 8 anos. Apesar de incrivelmente distantes um do outro, são só 8 anos. É como se a evolução tivesse dado um salto, como bem diria Charles Xavier. As notícias vieram muito rápido: Marvel tinha feito o impossível: se tornara “sozinha” uma produtora de filmes e contratado Robert Downey Jr. como Tony Stark e Jon Favreau – isso por si só já seria um feito, mas, no fim, após os créditos do filme, eles anunciaram: teremos mais e todos interligados.
Era impossível demais de conceber, mas estava acontecendo: Hulk, Capitão América, Thor… os filmes existiam, contavam suas histórias e ainda estavam todos conectados. Quando o primeiro Vingadores estreou, reunindo toda a equipe (todo o elenco) e narrando um capítulo que era a culminação (e mais uma parte) de todas essas produções… eu ainda não acreditava (mas revi no cinema só mais duas vezes, minha descrença havia diminuído).
Com o passar do tempo, mais impossibilidades aconteceram: a vinda do Homem-Aranha, o filme do Pantera Negra, a compra da Fox pela Disney. O impossível se tornou corriqueiro e mesmo com uma versão muito única de seu universo nos cinemas, a Marvel da tela grande parecia cada vez mais com a Marvel dos gibis: Homem-Aranha protegia um quadrante de Nova York e Dr. Estranho outro. Os Guardiões da Galáxia poderiam passar perto da Capitã Marvel e isso não seria uma surpresa. Esses mundos finalmente faziam sentido tanto juntos quanto separados.
Quando comecei a perceber isso, veio o meu “impossível” mais assustado: eles não iriam parar. Como nos quadrinhos, eles não iriam parar. Seriam personagens após personagens. Sagas após sagas e, como a tecnologia avançada, não precisariam nem mudar a cara de seus atores. Personagens eternizados com as faces de seus 20 ou 30 anos, envelhecendo e rejuvenescendo da forma mais esdrúxula que os roteiros poderiam escolher. Não existia mais o “impossível” e, com isso, também não precisaria existir mais limite (ou sensatez). O que é assustador porque um dos grandes defeitos pra quem acompanha quadrinhos-spandex é não ver esses personagens mudarem, sendo os mesmos – jovens, lindos, poderosos – em arcos e mais arcos de histórias que tomam alguns cansativos anos.
Então veio Vingadores: Guerra Infinita confirmando um trope bastante recorrente das HQs: mortes. Nos quadrinhos, personagens morrem e voltam como se os portões para o outro lado fossem somente um batente separando a cozinha da sala de jantar – bastava um pequeno impulso que você estava em um compartimento ou noutro. E esse senso de não-término me assustava. Como apreciador de histórias, quando as coisas não terminam, elas cansam. O fim deixa tudo melhor. Ele nos permite sair da cadeira de cinema, fechar a televisão, voltar às nossas vidas mais ou menos transformados pela experiência. Não terminar é como se nos tornássemos escravos daquela situação, presos por um senso de incompletude incômoda, por um amor cujo significado entremeou-se na linha narrativas das coisas não ditas e inconclusas.
Guerra Infinita foi impactante. Uma ode à narrativa vilanesca e um verdadeiro réquiem que anunciava que aquilo não teria fim… que era impossível ter um fim. Os trailers de Ultimato começaram a pipocar e a insistência na chamada me preocupava: que os heróis que sobraram não conseguiriam continuar se não trouxessem os anteriores. Morte e ressurreição. A grande praga dos quadrinhos. A Marvel agora podia tudo no cinema, inclusive isso. E cada novo spoiler do tão bem guardado segredo deixava evidente: eles morreram, mas voltariam, e a narrativa não terminaria.
Ultimato chegou. Ação desenfreada. Viagem no tempo. Retornos, como eu já esperava. Sacrifícios, como eu já esperava. Vilão vencido. Fim.
Fim.
Sem cenas após os créditos.
Fim.
A assinatura dos Vingadores originais na tela grande.
Fim.
Uma história completa. Arcos encerrados.
Fim.
Eu saí do cinema sabendo que, assim como em X-Men de 2000, eu vi o impossível. Foi lindo, emocionante, intenso. Era como terminar o ensino colegial e saber que uma fase acabou. Você sabia que ainda ia aprender, que a vida ia voltar a te dar aulas de alguma maneira, mas que aquele tempo ali, aquela rotina, aquela espera, até aqueles amigos… tudo acabou. Algumas poucas coisas ainda iam continuar: algumas amizades iam perdurar e mesmo algumas rotinas iam se manter, mas aquele ponto… aquele era um fim. Ultimato é um fim.
Fiquei alguns dias pensativo. X-Men não parava de retornar à minha cabeça. Os sentimentos que marcaram aquela sessão inesperada de cinema e como me senti quando saí dela – todos repetidos ali, ao final de Vingadores: Ultimato, como o espelhamento mítico de um ciclo completo. De repente, a frase de Stark, repetida tantas vezes em trailers e magnificamente coroando o final da Saga do Infinito “Part of the journey is the end”, tinha um sentido especial, incrivelmente pessoal pra mim.
Eu vou continuar assistindo filmes Marvel. Mais 11 anos de uma nova jornada, novos personagens, novas aventuras. Mas eu estou feliz por, dessa vez, ter chegado ao fim. Ter completo esse segmento (e com Stan ao lado). Porque, do começo ao fim, eu vivi o impossível.