Imagens em Palavras - Encontrando a Equipe: Parte 03

Se você retorna a grandes artistas dos quadrinhos, como Eisner, Kubert ou Kirby, eles vão falar que letras e desenhos trabalham de forma uníssona - e suas páginas não os deixam mentir. Lembro que Will Eisner foi o primeiro autor de quadrinhos que me fez ter a real noção do impacto do letramento de um trabalho, seja no texto dos balões ou nas onomatopeias. A versão em português de Asterios Polyp, de Mazzucchelli, reletrada pela sensacional Lilian Mitsunaga, é uma aula sobre integração de texto e arte com objetivos narrativos - afinal, o texto é a arte e vice-versa - e de como, mesmo utilizando o original como base, um letrista não precisa ser necessariamente o desenhista da história, mas estar em sintonia com este.
Confesso que estava preocupado com o letramento de Lâmina Azulada desde o começo. A ideia inicial era que eu mesmo fizesse, mas apesar de minha prática, eu sentia um “gap” entre o que eu era capaz de fazer, o que eu queria, o que eu tinha real paciência de fazer e o “algo a mais” - aquilo que daria destaque ao trabalho, que “sincronizasse” da melhor forma possível com o desenho do Rafael - assim, como Lilian e seus trabalhos.
Mas, como eu já disse antes, muita coisa tomou um rumo inesperado.
Tinha algum tempo, eu acompanhava o quadrinho Justiça Sideral, principalmente através de seu principal artista, Netho Diaz. Achava o conceito de uma força policial interplanetária muito bacana e fiquei muito interessado em escrever algo para a série. Mas tanto eu ainda não tinha contato com o criador do JS, Deyvison Manes.
Zé Wellington, um amigo que talvez eu cite em outros textos, sempre muito bem articulado, tinha chegado junto ao Deyvison e este perguntara se Zé não gostaria de fazer algo para o Justiça - o que já me "deu a entender" que havia sim espaço para uma segunda voz em seu universo. Zé, sempre muito ocupado, negou por hora, mas deixou a porta aberta para um futuro. Eu, quando soube disso, e gaiato como sou, me aproveitei desse espaço.
Conheci Deyvison em algum lugar de 2015 (não sei bem se no FIQ ou na CCXP), gostei bastante do cara: calmo e com aquele olhar de quem tem uma ideia a mais além daquelas que fala. Achei-o bastante criativo e com um tino empreendedor, o que me deixou bem seguro quanto a uma série de coisas que viriam depois, mas, principalmente, em bater um papo com ele naquele momento.

Na época eu era viciado em White Collar, uma série que, com muito charme e uma estrutura de roteiro bem simplista, tem crimes ligados a arte como seu chamariz. Na minha cabeça, eu ficava pensando em como seria um crime de arte num futuro em que os materiais e a própria percepção de arte poderiam ser diferentes, mais “avançadas” - pra se utilizar de um vocábulo reducionista, mas não necessariamente apropriado - e eu sentia que Justiça Sideral era um universo perfeito pra essa história.
Conversei com Deyvison um pouco e nos demos bem. Falei sobre minha ideia com ele e se isso poderia, de alguma forma, servir para JS. Ele me escutou com atenção e ficou curioso, perguntou se tudo ok tratarmos melhor por e-mail. Fiquei empolgado e, depois dos eventos passados, trocamos mensagens e começamos o trabalho.

Trabalhar com Deyvison é um grande aprendizado porque ele tem qualidades que eu gostaria de ter: um cara organizado, mas flexível, sabe muito bem o direcionamento que quer tomar e tem um perfil bem de editor mesmo: ajuda com ideias, corrige discrepâncias, consegue ter uma percepção do geral tão clara quanto do específico, e sabe conversar de forma direta e objetiva, sempre mantendo um diálogo sincero sem ser ofensivo. Eu facilmente me sinto à vontade com ele estando à frente de um projeto, mantendo sua liderança ativa.
Enquanto eu escrevia Justiça Sideral: Erídhia - com muitas enriquecedoras discussões sobre os personagens e o roteiro - eu ia vendo o trabalho do Deyvison além de editor/escritor do JS: ele estava atuando como letrista de vários trabalhos, e eu comecei a perceber o quanto ele tinha esse “algo a mais”, o quanto ele percebia o traço, a obra, a arte e mantinha o letramento como parte da narrativa, parte da identidade visual do quadrinho. Eu pensava que Deyvison seria o nome ideal para fazer o letramento de Lâmina Azulada, mas aí cabe uma coisa interessante: eu tinha receio de pedir isso a ele porque eu o achava num patamar muito “acima” do que eu estava fazendo.
É engraçado como a gente carrega uma síndrome de inferioridade em coisas que não deveriam existir. Quanto mais “periféricos” estamos (sou cearense e isso basta pra dizer muito), mais o volume disso aumenta. Eu via Deyvison produzindo uma obra de caráter bem hollywoodiano, trabalhando com grandes artistas, envolvido num projeto da MSP, e não poderia imaginar nele aceitando fazer um trabalho sobre cangaço para um cearense (esse "lugar comum"). Na minha cabeça boba, eu estava dissociando o cara que tinha passado dias conversando comigo sobre o roteiro do próprio título e elogiado meu trabalho, do cara que estava lutando pelo ganha-pão com seu letramento tanto quanto eu.
Quantos artistas passam por isso? Quantas oportunidades perdemos ou quantos “sim” deixamos de receber por causa desse tipo de sentimento tão inferiorizante e irreal?
Enfim, em um dado momento, eu tive de deixar essa paranoia de lado, pensei em um acordo e conversei com Deyvison. Ele, humilde e profissional, aceitou. Perguntou várias vezes como eu queria tudo e apresentou referências, sugestões, e foi super atento com o que estávamos fazendo ali. Ao fim, trouxe as próprias ideias e enriqueceu a narrativa do Rafa. Quando me enviou as primeiras páginas, eu não acreditei, era como se o letramento tivesse sido feito ao mesmo tempo do desenho: a sincronia perfeita entre os dois artistas. Meu dream team estava formado.

Assim, todo meu receio, além de parecer infundado desde o começo, agora estava a milhares de quilômetros e, com a dança entre desenho e letras bem ajustada, a obra finalmente parecia existir ali: eu estava com as páginas que eu havia escrito, elas agora são reais. Olho uma ou duas vezes e me pergunto como algo que só parecia existir na minha cabeça conseguiu tomar forma de maneira tão concreta.
Agradeço muito a esses parceiros. Pra mim, são como segundos autores porque eu não tinha como chegar ao resultado que estamos chegando sozinho, e Deyvison é um elemento essencial nessa trinca.
Até a próxima.