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Cangaço: Estética e Gênero


Parece uma regra não declarada, mas a maioria dos autores nordestinos trabalham com cangaço em algum momento de suas carreiras. Não é minha intenção aqui ficar caçando os motivos disso - que devem ir desde a identificação óbvia à idealização numa busca por algum tipo de símbolo heróico, como a maioria das culturas fazem com seus “guerreiros” nativos, por mais questionáveis que historicamente eles sejam - o que realmente me chama a atenção é a maneira como nos apropriamos do cangaço, mas nos complicamos em definir que tipo de resgate é esse.


Há quem veja o cangaço como um gênero histórico, pautado na realidade das documentações, lides e outros itens que resgatam o que “realmente” aconteceu nesse período, outros o interpretam como um derivado nacional do western, com o banditismo e o heroísmo quase misturados, mas por vezes “descolados” de seu contexto social e de época ou utilizando os mesmos como desculpas, numa base real meio irreal. Por fim, existe a percepção do cangaço como um gênero único que tem elementos próprios.

Bem, particularmente, não o vejo dessa forma e durante muito tempo não expus essa opinião porque me faltavam argumentos pra dizer o que realmente acho que seja o cangaço. Hoje a resposta me parece bem simples: cangaço é uma estética. A fim de dar um escopo melhor ao que eu quero dizer, trago uma definição (simplista e bem reducionista, mas que casa de forma mais apropriada à discussão) de gênero literário

é o conjunto de elementos (semânticos, sintáticos, morfológicos, estilísticos etc.) que dão escopo a um texto literário.

Assim, tradicionalmente, define-se três grandes gêneros: narrativo, lírico e dramático. Os quais, por sua vez, se subdividem em outros tantos: épico, fábula, epopeia, novela, conto, crônica, ensaio e romance (narrativos); elegia, ode, écloga e soneto (líricos); auto, comédia, tragédia, tragicomédia e farsa (dramático).


Acredito que não é preciso de tantos estudos assim pra entender mais ou menos a lógica dessa estruturação (mas deixei alguns links aqui pra quem quiser se aprofundar no assunto) e, ao meu ver, definir cangaço como gênero é o mesmo que desconsiderar que as novelas arthurianas sejam um resultado natural dos épicos ou epopeias, e dizer que as mesmas são gêneros unos, separados do primeiro, e, por isso, não perceber que a cavalaria está presente em diversos gêneros literários (romances, poesias, comédias)… assim como o cangaço.


Procurando me distanciar da postura de velhinho catedrático que assumi até agora, não é preciso se distanciar muito de fontes modernas pra reconhecer, inclusive, essas diferenças: filmes de super-heróis, principalmente os da Marvel - na contramão do que tenho lido/percebido dos críticos - me parecem tratar o super-heroísmo mais como “tema” que “gênero”. Não à toa, você tem thrillers políticos (Black Panther, Captain America: Winter Soldier), épicos de ação (The Avengers), e mesmo dramas familiares (Thor, Ant-man and Wasp), todos com uma roupagem spandex, mas com bases e modelos de outros gêneros (clássicos e tradicionais) do cinema.


Sendo assim, eu prefiro colocar o cangaço como uma estética

um conjuntos de elementos visuais, linguísticos, utilitários e humanos que dão integridade e identidade.

A definição como tal me surgiu esse ano (2019) através de uma dissertação do artista Fred Macêdo, que, por sua vez, referencia a expressão a Frederico Pernambuco de Mello, autor do livro Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço, em que ele apresenta que elementos são esses que definem o cangaço.


No entanto, antes de conhecer a dissertação do Fred e já nesse zeitgeist, Zé Wellington nos presenteou com seu quadrinho Cangaço Overdrive, uma história de ficção científica cyberpunk (o gênero do gênero) que se utiliza da estética do cangaço. Antes dele, Bando de Dois, de Danilo Beyruth, num misto de reapropriação da estética e resgate do nordestern, chegava com os dois pés revitalizando os quadrinhos nacionais. Além dele, o querido Capitão Rapadura, do Mino, pega emprestado um ou outro elemento da estética cangaceira - e nos últimos anos, Mino tem se voltado ainda mais pra isso, trazendo o personagem “Virgulino”, pai de criação do próprio Capitão. E isso tudo é só a ponta do iceberg.

"Bando de Dois", de Danilo Beyruth. É de meu total desejo tirar um momento mais longo pra falar sobre esse quadrinho e o impacto dele no nosso mercado. Pra mim, essa obra do Beyruth inaugura o que eu chamo de "Quadrinho Novo".

Tratar sobre esse assunto, ao menos pra mim, tem a ver com uma necessidade de se apropriar dos temas e motivos do cangaço para se criar qualquer texto, daqueles que se enquadram em qualquer gênero - no nordeste, o cordel faz isso com uma propriedade única; no mundo, o que não faltam são histórias de samurais, não importando suas origens. Além disso, acredito que perceber o cangaço como uma estética ampliam as opções de uso dele e nos permite brincar com seus elementos, misturando-os com outras estéticas (indígena, tecnológica, medieva) a fim de apresentar obras cada vez mais ricas visualmente, bem como cada vez mais revestidas de nossa identidade cultural e com temas universais, de interesse a qualquer pessoa do mundo.

Para #LâminaAzulada eu procurei me utilizar da estética do cangaço dentro do gênero do épico clássico. Logicamente, como um produto contemporâneo, eu não escrevi um trabalho de "gênero puro" (se é que isso existe), "roubando" elementos da tragédia, da epopeia e das fábulas - todas em diferentes níveis e com certas "dosagens". Assim, sigo na direção do fantástico, com criaturas bestiais, seres sobrenaturais e outros elementos comuns ao gênero, mas com uma estética voltada ao cangaço.


Espero que vocês gostem! Até a próxima!

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